O Rio de Janeiro, talvez o grande olho do furacão das atuais crises sociais brasileiras, voltou a se alarmar com os índices de violência e também a recorrer ao uso das Forças Armadas em áreas consideradas ‘fora de controle’. Para conversar sobre essa conjuntura, em um ano emblemático, o Correio entrevistou o deputado estadual Marcelo Freixo, que voltou a destacar a ausência de outros braços estatais, para além do armado, nos locais estigmatizados, no momento em que já se completam cinco anos da implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).
“O problema é que o projeto das UPPs não se deu exatamente em nome da segurança pública. As áreas mais violentas não foram as que receberam UPPs. As áreas que as receberam são aquelas destinadas a investimentos do capital privado, isto é, favelas da zona sul, da área hoteleira, do entorno do Maracanã e da zona portuária”, resumiu o deputado estadual.
Sobre a segurança, Freixo exaltou a PEC 51, que visa unificar e desmilitarizar as polícias, cujo conteúdo considera adequado para as diversidades regionais do país. Além disso, voltou a bater na tecla do Rio de Janeiro como “cidade-laboratório” para o capital privado consolidar seus processos de dominação do espaço urbano, o que só poderia, por outro lado, elevar as resistências.
“É a ‘cidadania do aplauso’, onde a sociedade só é chamada a aplaudir grandes espetáculos, mas não constrói políticas públicas de saúde, educação, mobilidade etc. Não há participação efetiva. E decisões importantes são tomadas pelos donos do capital. Como exemplo, o transporte público inteiro do Rio, dominado pelas empreiteiras”, explica.
Por fim, o deputado também fez um breve balanço sobre o fim da ‘era Cabral’, negativo por razões variadas: “além de problemas éticos e políticos, Sergio Cabral deixou uma grave situação financeira”, resumiu.
A entrevista completa com o deputado estadual Marcelo Freixo pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em sua opinião, qual a atual situação da segurança pública do Rio de Janeiro e as políticas relativas a ela na cidade?
Marcelo Freixo: É evidente que a segurança pública é problema nacional, não há nenhuma grande cidade que não tenha tal problema. Não só no Rio, os índices de violência de várias outras cidades brasileiras são altos. Cidades como Vitória e Recife têm índices, ao menos de homicídio, até superiores. Mas é evidente que o Rio vive outro modelo de segurança, por conta dos grandes eventos. Tanto os que já ocorreram, como a Jornada Mundial da Juventude e a visita do papa, como os próximos, a exemplo da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Temos um calendário que reforça um projeto de cidade-negócio, business, uma cidade administrada pelos interesses do capital. E tais eventos servem muito como instrumentos de fortalecimento de tal concepção de cidade.
Há elementos de cidadania muito limitados, com grau muito pequeno de participação e decisão da população, e de outro lado há instrumentos de controle muito grandes. Chamamos de “cidadania do aplauso”, onde a sociedade só é chamada a aplaudir grandes espetáculos, mas não constrói políticas públicas de saúde, educação, mobilidade etc. Não há participação efetiva. E decisões importantes são tomadas pelos donos do capital. Como exemplo, o transporte público inteiro do Rio, dominado pelas empreiteiras: a Odebrecht está com os trens, a OAS com o metrô e a CCR com as barcas Rio-Niterói. Ou seja, as empreiteiras têm a gestão da mobilidade urbana do Rio de Janeiro. E numa cidade-negócio as decisões políticas são tomadas pelo interesse do capital.
A segurança pública não está longe disso. As UPPs seguem a lógica da cidade-negócio, através da decisão de onde instalá-las. Área que o Estado domina militarmente tem a ver com redutos de maior investimento do capital privado. A segurança pública talvez seja o maior debate do Rio, mas não está isolada, está relacionada ao Rio de Janeiro enquanto laboratório de tal modelo de cidade descrito aqui.
Correio da Cidadania: Que avaliação você faz das UPPs, após cinco anos de sua implantação como política de Estado?
Marcelo Freixo: Já são cinco anos de UPP e um grande debate a ser feito. Sempre defendemos polícia comunitária. Uma polícia que se aproxime dos moradores, não uma polícia que entra, faz uma guerra e sai. Mas o problema é que o projeto das UPPs não se deu exatamente em nome da segurança pública. As áreas mais violentas não foram as que receberam UPPs. As áreas que as receberam são aquelas destinadas a investimentos do capital privado, isto é, favelas da zona sul, da área hoteleira, do entorno do Maracanã e da zona portuária. São essas as áreas de UPP. Já na zona oeste, a violência é bastante alta e houve aumento dos índices na região.
Evidentemente, a cidade pensada como um todo tem problemas em relação às UPPs. Nos lugares onde foram instaladas, há grandes problemas em sua atuação, porque não foram pensados mecanismos de autonomia e participação das pessoas. Se nesses locais há a vantagem de não se ter o tráfico armado, por outro lado não têm um projeto social estabelecido, não têm planejamento, autonomia do morador.
O morador não tem canal para garantir autonomia nas decisões do lugar onde nasceu, viveu e ajudou a construir. Nas UPPs, o controle militar sobre a comunidade vem gerando uma série de conflitos, especialmente com a juventude. Tem lugar do Rio onde a polícia é quem decide se um pai pode fazer festa de 15 anos da filha ou não. É um controle militar que exacerba completamente qualquer construção. É isso que vem gerando tantos conflitos nos cinco anos de UPP.
Além do mais, não temos uma polícia formada com outra concepção, de respeito aos direitos. Temos a mesma fórmula policial de sempre, o que, claro, é complicado. O policiamento comunitário é válido, mas deveríamos ter um outro projeto, planejamento, com controle sobre a polícia e mecanismos de autonomia e diálogo da sociedade com as forças presentes na favela.
Correio da Cidadania: Há, de fato, um aumento da violência nos últimos meses? A que se deveria isso e o que pensa da nova decisão de utilizar o exército nas favelas?
Marcelo Freixo: Vários índices dizem que sim. Até porque há um deslocamento. Há redução do tráfico, mas aumento de roubos de carro, furtos, assaltos. Temos visto aumento em alguns índices, sim. Mas de forma desigual, alguns lugares são muito mais violentos que outros.
Quanto ao exército, se depois de cinco anos de polícia comunitária este seria a solução, é porque alguma coisa está muito errada. O exército não é polícia, não tem formação policial, não tem o direito constitucional para atuar como polícia. São garotos, jovens completamente despreparados e, no dia a dia, a chance de equívocos é muito grande. O exército não tem tal função e nem o devido preparo.
Se depois de cinco anos de UPP ainda tem favela ocupada por forças armadas, é sinal de que avançamos muito pouco. A favela é um espaço da cidade, tem de ser pensado assim. Não existe Rio de Janeiro sem favelas. Portanto, não podemos pensar que a solução é as forças armadas. Isso mostra como a favela é pensada por fora do eixo de cidade.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, locais de maior tensão, como o Complexo do Alemão e Maré, são alvo de tentativas de maior gerenciamento por parte do Estado nos últimos anos, além de vermos casos como o da reintegração de posse da favela da Telerj (ocorrida no dia em se fez essa entrevista -11/04). O que você poderia falar a respeito de tais acontecimentos, marcados por forte intervenção militarizada?
Marcelo Freixo: No caso da favela da Telerj, havia a ocupação num prédio abandonado, que nunca resolveu suas dívidas. Normal, pois não existe movimento sem teto sem o impulso das ocupações. É uma política de movimento, caso contrário não tem investimento do Estado, dado que o déficit habitacional está gravíssimo, especialmente numa cidade cara e especulativa como o Rio de Janeiro.
Já no Alemão e na Maré, são situações de muito controle. A Maré tem 130 mil moradores. Maior que a maioria dos municípios do RJ. Dos 92 municípios do RJ, poucos têm mais população que a Maré, uma área de inúmeros déficits sociais. A Maré tem creche, escola, mas os serviços são muito ruins.
Portanto, em lugares com tal complexidade, como Rocinha, Alemão e Maré, uma UPP enfrenta desafios muito maiores que numa comunidade pequena, onde o diálogo é mais fácil. Já era de se esperar a situação atual.
Correio da Cidadania: Diante desse contexto, o que pensa da PEC 51, agora sob análise do Congresso, e que visa tornar as polícias uma força civil, isto é, a sua desmilitarização?
Marcelo Freixo: Tenho falado muito dessa PEC. Ela foi escrita pelo Luiz Eduardo Soares, apresentada ao senado pelo Lindbergh Farias e tem um texto excelente, que contempla anos de debate sobre a desmilitarização da polícia, algo necessário para o bem da própria polícia. A PEC 51 não é contra a polícia. Não existe polícia nenhuma no mundo que tenha estrutura como a da polícia brasileira, hierárquica, oriunda da estrutura militar e braço auxiliar do exército. Um modelo sem igual no mundo.
O texto traz realidades diferentes, de cada cidade e região, pois é claro que a polícia necessária ao Rio Grande do Sul não é a mesma necessária ao Piauí. Assim, respeitam-se diferenças e limites regionais.
Enfim, é um texto que materializa muito acúmulo de debate sobre um outro formato de polícia. E isso é fundamental para construirmos um novo modelo de segurança pública e avançarmos para outro modelo de polícia.
Correio da Cidadania: Que balanço faria da era Cabral, encerrada um pouco antes do prazo previsto por conta de sua campanha para o Senado?
Marcelo Freixo: O Cabral já não governava o Rio há muito tempo. Apenas formalizou uma saída que já tinha ocorrido há bastante tempo. Ninguém no Rio se sente governado pelo Cabral, há tempos. A relação mudou completamente.
Ele foi reeleito com um nível de aceitação enorme entre o primeiro e o segundo governos. Mas é de uma soberba impressionante, de maneira geral tinha enorme falta de respeito pelos funcionários públicos, por exemplo. Não teve políticas públicas com o mínimo de qualidade. Isso somado a sua arrogância e atitudes, como andar de helicóptero e levar a família para casa em Mangaratiba, ou viajar em jatinho de empreiteiro, enfim, questões comportamentais que não ajudaram em nada seu governo, que por si só já era muito questionável.
Um governo que nas áreas essenciais, como saúde e educação, não avançou nada. Na moradia, nem se fala. Isso acabou contribuindo para ser um dos governos mais mal avaliados do Brasil, o que dificulta fazer seu sucessor. A dívida do Rio cresceu 47% na era Cabral. E a dívida do estado hoje é maior que toda a arrecadação de um ano.
Portanto, além de problemas éticos e políticos, Sergio Cabral deixou uma grave situação financeira.
Correio da Cidadania: O que pensa que viveremos nos próximos meses na cidade do Rio de Janeiro, com uma possível radicalização dos protestos de rua e a utilização de um aparato de repressão cada vez maior? Em que medida isso pode afetar os bairros e comunidades mais pobres?
Marcelo Freixo: É muito difícil prever o que pode acontecer no Rio. Não só no Rio, na verdade. Mas assim como é laboratório de cidade do capital, também é laboratório das resistências. Não à toa, o Rio de Janeiro teve as manifestações mais candentes do Brasil. Porque foi o maior laboratório de cidade afeita aos grandes negócios do capital.
Que as manifestações vão ocorrer, sabemos, mas o tamanho é difícil prever. Há muitas coisas que vão mexendo com o ânimo do carioca, há uma população no limite da reação, contra todas as coisas que advêm do poder público. É possível ações de greve de funcionários públicos nesse início de governo. Falo início porque faz poucos dias que o Pezão assumiu. Algumas categorias podem entrar em greve. Também faltam poucos dias para a Copa do Mundo, o que provocará mais manifestações…
Portanto, é evidente que temos muitos problemas, como no Maracanã, como no direito à cidade, na não melhoria dos serviços públicos, num trânsito caótico que piorou muito… E tem essa coisa de “padrão FIFA”, de riqueza das empreiteiras, custos estapafúrdios. Mas é difícil prever o caráter, o tamanho e a pedagogia das manifestações.
Qualquer radicalização gera consequências graves. A violência não tem um método. Uma explosão de violência de um movimento, ou reação de momento, é uma coisa. A violência pensada como instrumento afasta as pessoas, diminui a capacidade de mobilização, o número de pessoas na rua e a chance de se conquistarem os objetivos da pauta. E pra isso temos a pedagogia da luta. Ou seja, qualquer radicalização gera o uso da força do Estado, que é sempre muito desproporcional e mais violenta, especialmente contra os mais pobres. No entanto, tudo que pode vir a ocorrer ainda é imprevisível.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania