29 de mai. de 2014

RESPOSTA DO PSOL ÀS ACUSAÇÕES DE SILAS MALAFAIA CONTRA JEAN WYLLYS

O pastor Silas Malafaia, principal liderança do fundamentalismo homofóbico brasileiro, acusou... o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), através das redes sociais, de "pressionar seu partido para não deixar um pastor ser candidato". Não nos surpreende a desonestidade intelectual de Malafaia, mas é preciso esclarecer a situação:
1- As decisões sobre candidaturas, no PSOL, são tomadas coletivamente, através das instâncias democráticas de representação eleitas pelos filiados. Nem o deputado Jean Wyllys nem qualquer outro parlamentar decidem quem pode ou não ser candidato: a decisão cabe ao diretório e à convenção partidária.
2- Não existe qualquer questionamento do deputado Jean Wyllys com relação à possibilidade de que "um pastor" seja candidato. De fato, na última eleição municipal, em 2012, os pastores Mozart Noronha, no Rio de Janeiro, e Henrique Vieira, em Niterói, foram candidatos a vereadores. Henrique foi eleito e seu mandato de luta muito nos orgulha, e ele é parceiro do mandato do Jean em diversos projetos e intervenções.
3- No PSOL não há lugar para a intolerância religiosa e o partido tem filiados, militantes, dirigentes, parlamentares e pré-candidatos de diferentes religiões, assim como ateus. Mas também não há lugar para a homofobia, o racismo, o machismo, a misoginia, a xenofobia e outras formas de ódio e preconceito às quais alguns que usam o nome de Deus estão tão acostumados.
4- No caso de Jefferson Barros, mencionado numa reportagem da revista Veja (que faz acusações sem ter ouvido as partes envolvidas), o questionamento à postulação dele, que será debatido e decidido nas instâncias partidárias, não é apenas do deputado Jean Wyllys. A militância dos núcleos e setoriais, os demais parlamentares e todas as correntes que integram a chapa majoritária da direção estadual eleita no último congresso com 78% dos votos têm uma opinião comum sobre o caso, de modo que sequer caberá "pressão" alguma.
5- Os motivos do questionamento à pré-candidatura do cidadão Jefferson Barros são vários e não têm nada a ver com a sua religião ou com sua condição de pastor. Tem a ver, sim, com sua participação em marchas homofóbicas organizadas pelo pastor Malafaia com o expresso objetivo de negar os direitos civis da população LGBT. Tem a ver com o histórico de envolvimento de Barros, em eleições anteriores, com campanhas e candidaturas que expressavam exatamente o oposto aos princípios e ao programa do PSOL. Tem a ver com que o PSOL não é um partido de aluguel que possa ser usado por aqueles que a cada eleição mudam de partido, passando da esquerda para a direita e da direita para a esquerda como quem troca de roupa. O PSOL tem programa, tem princípios e tem lado, que é o lado dos oprimidos, e não o dos opressores.
6- Se o cidadão Jefferson Barros não fosse pastor, ou não fosse evangélico, mas continuasse defendendo os valores que ele defende, contrários aos do PSOL, nossa posição seria a mesma. E se, pelo contrário, ele fosse um pastor como Henrique ou como Mozart — pastores comprometidos com os direitos humanos, a igualdade, a fraternidade e as lutas do povo —, ele seria muito bem-vindo.
Rogério Alimandro
Presidente do diretório estadual do PSOL-RJ
Chico Alencar
Deputado federal pelo PSOL-RJ
Marcelo Freixo
Deputado estadual pelo PSOL-RJ
Eliomar Coelho
Vereador pelo PSOL-RJ

23 de mai. de 2014

À Direção Nacional do PSOL
À Direção Estadual do PSOL–SP
A todos os militantes que lutam por um Brasil Socialista


Para que ao invés de luta interna e de polêmicas tenhamos a unidade do PSOL e da esquerda!
Para que o PSOL se fortaleça!
Para que tenhamos os melhores representantes e candidatos!
Para construir uma alternativa anticapitalista!
Vivemos um momento decisivo. A classe dominante tenta fazer da eleição um jogo de cartas marcadas entre os 3 candidatos que defendem os seus interesses. Necessitamos tomar medidas drásticas para que a esquerda socialista tenha condições de disputar os corações e mentes que saíram às ruas em junho. Para isso é necessário uma política correta nos grandes centros. Escrevo esta carta e apresento uma proposta para ajudar a construir esta possibilidade e evitar uma catástrofe política em nossa campanha em São Paulo e, consequentemente, em nossa campanha nacional.
Em junho de 2013 o Brasil viveu um levante juvenil e popular. As multidões nas ruas cantavam “o povo acordou”. Quem presenciou, quem viveu, quem participou não esquecerá. É preciso ser fiel ao povo que tomou as ruas para dizer basta. A crise de representação do sistema político atual ficou evidente. A demanda por melhorias na saúde, na educação, no serviço público em geral e no transporte público em particular ficou patente. Uma ampla plataforma de reivindicações foi erguida por um movimento de massas com uma enorme criatividade e muita espontaneidade, embora resgatando inúmeras lutas que vinham sendo travadas antes e com muitos dos ativistas que antes de junho militavam pelas causas abraçadas massivamente em junho. Sabemos muito bem que entre estes ativistas estavam os militantes do PSOL, do PSTU, do PCB, militantes e amigos da esquerda que não se rendeu e não aceitou sustentar o regime burguês, curso seguido pelo PT e pelo PC do B, a velha esquerda que capitulou e se integrou na defesa da ordem burguesa e sua lógica de exploração e opressão dos trabalhadores e dos jovens.
Os militantes de esquerda que atuaram em junho tem a responsabilidade de fazer com que nas eleições que se aproximam a pauta de junho não seja manobrada, desviada ou simplesmente desconsiderada. O espírito combativo de junho precisa se apresentar nas eleições de outubro. Se é verdade que as eleições são um terreno para a burguesa exercer uma das formas de seu domínio, é verdade também que as eleições foram uma conquista na luta contra a ditadura e será um momento em que milhões serão chamados a participar e a esquerda não pode deixar de apresentar a sua proposta, o seu caminho, a sua alternativa para que a crise não continue sendo paga pelo povo.
Para que a luta de junho possa ser pelo menos parcialmente traduzida na disputa eleitoral, tenho me jogado, junto com muitos outros camaradas, para que o PSOL assuma a responsabilidade de agarrar com força as bandeiras de junho. Este foi um dos sentidos dos debates que a Fundação Lauro Campos, a qual tenho tido a honra de presidir desde o último Congresso do PSOL, tem promovido em vários Estados do país. Tenho percorrido o país com esta discussão. E tenho ficado muito satisfeita de ver que o nosso pré-candidato do PSOL a presidente da República, companheiro Randolfe, tem pautado sua intervenção fazendo eco à primavera carioca, encabeçada em 2012 pelo companheiro Marcelo Freixo, de que nada é impossível de mudar. Randolfe tem se manifestado em defesa das greves, dos melhores salários, contra as privatizações, denunciando as falcatruas da copa, o domínio do capital financeiro, a luta pela reforma agrária, contra a corrupção, pelo passe livre e também pelos direitos civis, como o casamento igualitário e a descriminalização da maconha, proposta importante de nosso deputado federal Jean Wyllys.
As posições que Randolfe tem defendido reafirmam minha convicção de ter tomado a decisão correta em aceitar a tarefa de ser candidata a vice-presidente na chapa nacional. Assumi tal tarefa na expectativa de ajudar na definição de um programa fiel a junho e às causas anticapitalistas e para construir a unidade partidária necessária para enfrentarmos o processo eleitoral. Busquei contribuir nesta construção programática, apresentando em diversos momentos um conjunto de propostas e eixos programáticos. A unidade do PSOL era e é fundamental para garantia do fortalecimento do partido, sobretudo depois de um congresso em que Randolfe teve o apoio de menos de 50% dos militantes do partido e eu mesmo obtive o apoio de cerca de 30%. O partido assim, depois de um congresso dividido, tinha como primeira tarefa recompor sua unidade. Sem ela nossa impotência seria total e nosso fracasso definitivo. Quem fundou o PSOL e tem orgulho desta história não deixa de defender o partido.
Garantida a unidade partidária, o desafio seguinte seria unir outros setores da esquerda. Este foi o plano que se concretizava na constituição da Frente de Esquerda, tanto a nível nacional como nos Estados. Apesar das dificuldades do avanço das negociações para a conformação da chapa nacional, foi possível avançar em Estados importantes. No Rio Grande do Sul, em Alagoas, por exemplo, a frente foi fechada. Mas o mais importante é que a frente estava se encaminhando para se concretizar em SP. Em São Paulo temos o centro, o coração do país. Trata-se, sem dúvida, da capital política do país, por concentrar grande parte do eleitorado, por seu peso econômico, social, suas lutas e tradição. Uma aliança nacional que não se concretize em SP é como se não existisse. E a concretização de uma aliança em SP compensa muito a ausência de uma aliança nacional. Isso é ainda mais válido devido a particular situação de SP – parte e ponto avançado da situação nacional – comovida por greves, protestos, surgimento de movimentos sociais novos, combativos e independentes, como o MTST. E a tudo isso se somou um triunfo do partido: a filiação de Vladimir Safatle, intelectual de esquerda, com muito prestígio, que se dispôs a ser candidato pela frente de esquerda. O PSOL estava até ontem unido na defesa de seu nome. O PSTU também declarou seu apoio.
A concretização da Frente de Esquerda (faltando apenas o PCB) era o desdobramento lógico de tal unidade. Tal unidade com Safatle era a garantia de que nas eleições teríamos força no principal Estado do país. A garantia de que o PSOL encabeçaria uma frente política e social muito além das nossas próprias forças e conectada com os acontecimentos de junho de 2013. O PSOL se fortaleceria. A campanha iria crescer. Mas eis que a direção do PSOL vota, numa votação bem dividida, a substituição do nome de Safatle pelo jornalista Maringoni. Como todo o respeito que devemos ter por Maringoni, seu nome divide o PSOL, inviabiliza a frente com o PSTU e a frente de esquerda e não tem condições de se apresentar como um pólo alternativo ao PT e ao PSDB, que são os dois partidos que sustentam o regime burguês brasileiro e disputa entre si qual será o carro chefe dos planos de ajuste contra o povo. Com Safatle o PSOL e a frente de esquerda podem começar a disputar influencia de massas. Sem ele nossa derrota na eleição se impõe, o que é inaceitável, sobretudo quando as chances de lutar e de vencer são evidentes e estão postas como uma possibilidade concreta.
Não se trata aqui de fazer balanço de porque se chegou a esta situação. Não é meu propósito discutir quem errou. Trata-se de lutar para termos o melhor candidato. Trata-se de resolver os problemas para que este nome seja de todo o partido e que se construa a frente de esquerda na capital política do país. Trata-se simplesmente de fazer o que deve ser feito, acima de desavenças menores por mais sérias que sejam. Ou seja, temos que todos colocar os interesses da classe trabalhadora acima de qualquer outra questão. E podemos fazer isso. Para tanto a direção do nosso partido em SP, regional na qual temos o maior numero de militantes, reconsidere sua decisão e escute o apelo de todos os militantes. Tenho confiança na capacidade de nossa direção da mesma forma que tive confiança na chapa nacional ao aceitar a posição de vice. Ao mesmo tempo, peço que Vladimir Safatle declare sua disposição de assumir a tarefa de ser candidato a governador e trabalhar com a direção de SP e a direção nacional do partido. Peço que ele confie que faremos todos um enorme esforço para garantir uma forte e unitária campanha em SP.
Para que minha disposição e vontade de construir o PSOL e a unidade da frente de esquerda não se resuma a palavras e a apelos, quero apresentar minha disposição em renunciar ao lugar de pré-candidata a vice presidente. Aliás, em todas as negociações para constituir a frente, a Unidade Socialista, em nenhum momento colocou em questão minha participação na fórmula majoritária, consciente da importância da unidade do PSOL. Mas se eu mesmo abro mão desta localização é para dar um passo além: conquistada a unidade do PSOL posso deixar claro para os companheiros da Unidade Socialista que aceito que a representação do PSOL seja feita apenas pelo nome de Randolfe, sem meu nome na fórmula majoritária. E ao mesmo tempo, com este gesto, garanto o lugar para que o PSTU aceite participar da chapa nacional. Trata-se de um esforço para superar todos os obstáculos. Sei que os companheiros do PSTU colocaram, além de ocuparem a vaga de vice-presidente, outras condições para compor uma chapa nacional comum, como é a concretização da aliança no Rio de Janeiro. Mas neste caso, com meu recuo, imagino que os camaradas do PSTU colocarão os interesses gerais da unidade em mais alta conta. Concretizando este gesto, renunciando o lugar de vice, quero mostrar que todos devemos saber refletir, recuar, ceder, compor, rejeitar o espírito de carreira e se comprometer com o espírito de junho. Para isso é preciso que a direção de SP mostre sua sabedoria e recue na decisão de não ter Safatle como candidato. Afinal, sem a unidade em SP a frente é impotente. E a candidatura de Safatle garantirá a unidade do PSOL. Garantirá a unidade da frente de esquerda. A vitória da campanha do PSOL em SP será fundamental para a vitória política da campanha Randolfe Presidente. Estou inscrita como soldada desta luta.
Temos um mês para resolver esta questão. Ainda, portanto, temos tempo para acertar. Mas não podemos perder este tempo em lutas internas e em polêmicas não construtivas.
Luciana Genro

12 de mai. de 2014

Escravidão em tempos modernos

Após 13 horas golpeando o canavial da fazenda com seu facão, o negro Romário chega, sob os últimos raios de Sol, ao barraco minúsculo onde vive trancafiado com outros três homens, igualmente escravizados e negros. O espaço não tem janela, água tratada e conta apenas com duas camas. Apesar disso, ele precisa comer os restos que o capataz lhe oferece e descansar: às 4 horas do dia seguinte, a labuta recomeça. Se resistir, será agredido com chicotadas e pauladas.
A cena poderia estar registrada no diário de algum cronista que passou pelo Brasil colonial no século XVII e visitou engenhos de açúcar no Recôncavo Baiano ou no litoral de Pernambuco. Infelizmente, não é o caso. Embora subjugados pela miséria, Romário Rosa e seus companheiros de lida eram homens livres até chegarem a uma fazenda na localidade de Angelim, em São Fidelis, no Norte Fluminense. Enganados pelo proprietário, foram escravizados por mais de dez anos. No dia 26 de abril, a polícia prendeu três pessoas: o fazendeiro, seu filho e o capataz.
Essa história pavorosa lembra uma passagem do livro “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Jr., publicado em 1942: “o passado, aquele passado colonial, aí ainda está, e bem saliente; em parte modificado, é certo, mas presente em traços que não se deixam iludir”. Nenhum país convive tanto tempo com a escravidão impunemente.
São Fidelis não é exceção. Entre 1995 e 2012, fiscais do Ministério do Trabalho resgataram 44.415 pessoas submetidas a condições análogas ao regime escravista. No último relatório produzido, a maior quantidade de flagrantes ocorreu no Pará, onde foram encontrados 563 trabalhadores. O estado foi seguido por Minas Gerais, com 394, e Tocantins (321). No Rio de Janeiro, foram registrados 14 casos dos 2.750 verificados no país. Apesar dessa tragédia, a PEC do Trabalho Escravo se arrasta no Congresso Nacional há inacreditáveis 15 anos, graças ao lobby dos ruralistas. Eles resistem porque a proposta prevê a desapropriação de terras onde haja trabalho escravo.
O Rio de Janeiro esteve no topo do ranking em 2009, quando 521 pessoas foram resgatadas em cinco estabelecimentos. A maior parte delas vivia em fazendas de cana em Campos dos Goytacazes. Os números chocam, mas a situação persiste. Em 2010, o Ministério Público Federal denunciou à 1ª Vara Federal de Campos seis gestores da usina açucareira Santa Cruz pelo crime. Os trabalhadores tiveram as carteiras de trabalho retidas e não recebiam devidamente seus salários. No ano seguinte, uma operação conjunta do Ministério do Trabalho, do Ministério Público e da Polícia Rodoviária Federal flagrou 20 pessoas – entre elas cinco menores – trabalhando em condições análogas na Fazenda Lagoa Limpa.
Passamos pelos períodos colonial, imperial e republicano sem enfrentar a questão agrária. Herdamos uma estrutura excludente e concentradora de riquezas, mas não realizamos a reforma que poderia diminuir as injustiças no campo e as pressões migratórias para as cidades. A consequência não é só o trabalho escravo, mas o crescimento da violência nas áreas rurais, motivada por conflitos fundiários. Segundo o Relatório Anual Conflitos do Campo Brasil 2012, da Comissão Pastoral da Terra, houve um crescimento de 24% no número de homicídios e de 102% nas tentativas de assassinatos, entre 2011 e 2012. A quantidade de famílias vítimas de crimes de pistolagem subiu de 15.456 para 19.968 (30%).
Apesar dos exemplos, a nossa herança escravocrata não se restringe ao campo. Ela impregna as instituições, o acesso a direitos fundamentais, as nossas relações cotidianas mais banais. Como escreveu Caio Prado, aquele passado colonial ainda está presente naqueles quartinhos apertados construídos nos fundos dos apartamentos; na resistência em reconhecer os direitos trabalhistas das empregadas domésticas; na proibição de uma babá entrar num clube da Zona Sul sem seu distintivo uniforme; na criminalização do funk; no êxtase provocado pelo justiçamento de um adolescente acorrentado a um poste; no assassinato de jovens negros nas favelas; na negação da humanidade da massa carcerária brasileira...


*Artigo publicado originalmente no jornal O Globo.

por Marcelo Freixo

5 de mai. de 2014

“Que um grito de gol não abafe a nossa história.”

Carta do I Encontro dos/das Atingidos/as –
Quem perde com os Megaeventos e Megaempreendimentos
 
Reunidos em Belo Horizonte no “I Encontro dos(as) Atingidos(as) – Quem perde com os Megaeventos e Megaempreendimentos”, de 1 a 3 de maio de 2014, constatamos que as violações geradas a partir dos megaprojetos e da saga privatista é comum em todas as cidades-sede da Copa 2014. Afirmamos que a Copa e as Olimpíadas estão a serviço de um modelo de país e de mundo que não atende aos interesses gerais do povo trabalhador e dos setores oprimidos pelo sistema capitalista. A Lei Geral da Copa, INCONSTITUCIONAL e autoritária, escancara que o Estado funciona a serviço das corporações e das empreiteiras. Abaixo expressamos algumas dimensões do sofrimento do nosso povo, potencializados pelos megaeventos como a Copa e as Olimpíadas.
Moradia
A Copa intensificou aumento dos despejos e remoções violentas nas cidades brasileiras. Duzentos e cinquenta mil pessoas com suas famílias estão sendo desestruturadas, levadas para longe de seus lugares de origem, causando impactos na saúde, na educação, no transporte público, além da violência física e psicológica. Tem gente com depressão, se endividando, esperando por soluções que nunca chegam. São vítimas da especulação imobiliária que expulsa os pobres das áreas do seu interesse.
Histórias semelhantes de violências contra populações ocorrem em todo o território brasileiro. Não pedimos essa Copa da Fifa. Mais do que barrar a Copa, queremos barrar os despejos e remoções no Brasil. Nossa luta é antes, durante e depois da Copa, para que nenhuma família brasileira sofra a violência e humilhação de um despejo ou remoção forçada. Decidimos sair deste encontro com uma grande união para barrar os despejos e remoções no Brasil. Sairemos juntos daqui numa articulação permanente, e assim estaremos mais fortes. Por um Brasil sem despejos! Brasil sem remoção! Respeito ao cidadão!
Trabalhadores e trabalhadoras ambulantes, catadores e da construção civil
Defendemos e valorizamos os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras ambulantes vítimas das arbitrariedades da Fifa e do governo, como a imposição da Lei Geral da Copa que proíbe o comércio de produtos nas proximidades dos estádios. Enfrentamos a repressão por parte das prefeituras municipais que estão “higienizando” as cidades licitando para que grandes empresas controlem as ruas. A Lei Geral da Copa estabelece zonas de exclusão de 2 quilômetros no entorno das áreas da Fifa, estádios e áreas oficiais de torcedores com telões, onde apenas os patrocinadores oficiais poderão comercializar. É necessário fortalecer canais de comunicação para denunciar os casos de impedimento de trabalho e violações ao direito dos ambulantes. Também propomos um boicote aos patrocinadores da Copa, em solidariedade aos ambulantes.
Denunciamos também que as prefeituras tem dificultado o trabalho de catadores e catadoras de resíduos sólidos nas cidades-sede da Copa. Na construção civil a velocidade da execução das obras produziu 8 mortes nas arenas da Copa e mais 3 em outros estádios, e uma infinidade de acidentes graves. Exigimos que se intensifique o controle sobre a segurança dos operários nos canteiros de obra e a garantia plena de seus direitos trabalhistas, como o direito à greve.
Comunicação e Cultura
A comunicação é um direito humano, desrespeitado pela mídia hegemônica e pelo Estado. O oligopólio dos meios de comunicação invisibiliza e tenta calar as lutas populares. Os mesmos que detêm o poder político e econômico, utilizam a mídia para fomentar uma sociedade mercantilizada, excludente, cheia de preconceitos e opressões. Reforçando o extermínio da população negra com a criminalização da pobreza e a esteriotipação da mesma. Enquanto as reais consequências da Copa da Fifa no Brasil são ocultadas.
Reivindicamos a democratização dos meios de comunicação, a partir da revisão do marco regulatório da mídia, incluindo uma revisão da atual regulação das rádios comunitárias para que de fato a comunicação seja um direito humano, que vocalize a realidade do povo brasileiro e que seja diversa, popular e emancipadora. Defendemos o respeito aos midiativistas e à imprensa popular e independente.
Mulheres
As violações históricas sofridas pelas mulheres são acirradas com a Copa. Denunciamos o aumento da exploração sexual e do tráfico de mulheres, o acirramento da mercantilização do corpo feminino - exposto como disponível em diversas campanhas publicitárias, como a da Adidas, tornando-as mais vulneráveis a estupros e assédios de diversas ordens. Atingindo majoritariamente à mulher negra, através da precarização do trabalho e estereótipos mantidos pela mídia e todos os aparatos institucionais.
Pessoas em situação de prostituição também são alvo da violência do Estado, que se intensifica no período da Copa do Mundo com a higienização forçada das ruas, principalmente nas cidades-sede. Ademais, as experiências das Copas da África do Sul e da Alemanha demonstram que os megaeventos mercantilizam as vidas e os corpos das mulheres. O Brasil não pode fazer parte da rota! As mulheres trabalhadoras continuam a ser exploradas e mesmo nas falas críticas às péssimas condições de trabalho, as companheiras são invisibilizadas. Continuaremos na luta por melhores serviços públicos e equipamentos urbanos de qualidade – políticas universais de mobilidade, saúde, moradia e educação são pautas feministas e merecem total atenção.
Diversidade Sexual
Pretendemos também estreitar os laços com os movimentos LGBTT, para somar espaços na luta pelo respeito à diversidade sexual antes, durante e depois da Copa.
Desmilitarização
A repressão do Estado às manifestações populares que questionaram a Copa intensificou o caráter de militarização da segurança pública pautada na identificação dos movimentos sociais como “inimigos internos”. Isto contribuiu também para dar mais força ao processo histórico de extermínio da juventude negra e da periferia pela polícia. A juventude deve ser respeitados em seu direito a se manifestar. O Brasil está vivendo uma escalada autoritária, onde governo e Congresso buscam criminalizar movimentos sociais. Devemos promover lutas contra as leis antiterrorista e antimanifestações. Defender a anistia dos processados e uma Campanha Nacional pela desmilitarização da Polícia Militar e desarmamento das Guardas Municipais.
O povo palestino foi atingido diretamente pela Copa do Mundo no Brasil, uma vez que há um fluxo importante de financiamento saídos dos cofres públicos para o complexo industrial-militar israelense, sustentando a política do genocídio e o apartheid contra os palestinos.
Comunidades Tradicionais
Entendemos que as injustiças aplicadas aos povos originários e tradicionais se agravam com os megaeventos. O projeto de desenvolvimento trazido com esses eventos impede a demarcação e titulação de nossas terras. O número de lideranças das comunidades tradicionais que estão sendo exterminadas e a intensificação dos conflitos entre indígenas e ruralistas são exemplos disso. A mesma situação enfrenta os/as pescadores/as de áreas extrativistas de pesca que perdem seus territórios de vida ameaçados pela especulação imobiliárias, hotéis, construção de portos, etc.
Vivemos hoje um contexto urbano, onde as lutas das cidades ganham muito mais pauta, mas entendemos que a mesma força que tira o direito à moradia é a que não deixa demarcar os territórios. Repudiamos a PEC 215/00 e outros mecanismos que visam impedir novas demarcações e titulações e abrem precedente para a revisão dos territórios já legalizados. Para enfrentar esta violência, os povos  se organizam em mobilização nacional como forma de resistência, numa agenda de luta conjunta que culminará no Encontro Nacional Indígena e Quilombola, entre 25 e 29 de maio, em Brasília. Pela soberania dos povos aos territórios!
Megaeventos e a financeirização da Natureza
A Copa de 2014 está sendo apresentada como copa sustentável, gol verde, parques da copa, copa orgânica, carbono zero, enfim, uma maquiagem verde que busca invisibilizar as violações de direitos, colocando a compensação como fato consumado e validando a economia verde e a mercantilização da natureza como mais uma falsa solução. Haja visto a quantidade de árvores que estão cortadas nas cidades da Copa, defendemos a campanha “Quantas copas por uma Copa? Nem mais uma árvore cortada!”
Crianças e adolescentes
Crianças e adolescentes estarão em situação de extrema vulnerabilidade durante a Copa em virtude das férias escolares, associadas à ausência de políticas públicas. Destaca-se a desvirtuação do papel do esporte, que passa por um duplo processo de elitização. Primeiro, como mercadoria pouco acessível, com ingressos e produtos caros. Segundo, como prática restrita a espaços privados e a setores privilegiados da sociedade. Neste contexto, as grandes máfias da exploração e do tráfico de pessoas poderão atuar com muita facilidade. É necessário e urgente criar campanhas de combate à exploração sexual e ao tráfico de pessoas nas escolas da rede pública, rede hoteleira, proximidades dos estádios e nas regiões turísticas. Deve ser incluída a capacitação dos profissionais do turismo e da rede hoteleira, o fortalecimento e ampliação das políticas de promoção dos direitos das mulheres e crianças e adolescentes. Não à redução da idade penal.
Mobilidade Urbana
Diante do cenário de modelo mercadológico de gestão da cidade, é fundamental reconhecer a bandeira da Tarifa Zero e da PEC 90 (transporte como direito social) como passos para se criar condições para efetivação do direito à cidade e da participação popular na gestão das cidades. Combatemos o modelo de mobilidade urbana que privilegia o transporte rodoviário em detrimento do transporte de massa, ciclovias, etc. Combatemos também a privatização das cidades e de seus espações públicos como praças, ruas, etc.
População de Rua
A organização da Copa do Mundo tem uma política social para a população de rua: abandono das políticas integradas, fechamento de equipamentos de assistência social (albergues e abrigos) e o aumento da violência e repressão das forças da segurança pública (Guarda Civil, Polícia Militar, etc.). O intuito é expulsar e coibir a população de rua das regiões centrais das cidades-sede da Copa do Mundo, gerando clima de insegurança e medo do que pode ocorrer antes, durante e depois dos jogos. Pelo fim do recolhimento e internação compulsórios.
Copa das Mobilizações
Diante de todo este cenário de violações e demandas concretas das comunidades e populações atingidas, é necessário fazer desta a Copa das Mobilizações. Não queremos a violência do Estado, mas a garantia e o fortalecimento dos direitos. Estar nas ruas durante a Copa do Mundo é um ato de fortalecimento da democracia e de avanço de um novo modelo de país que avance na participação direta do povo e na construção de políticas públicas efetivas em favor da justiça e igualdade social. Conclamamos a população a fazer desta a Copa das Mobilizações, mostrando ao mundo a força e a alegria do povo brasileiro em luta!
“Copa sem povo! Tô na rua de novo!”
Só a luta transforma!! #copapraquem
ANCOP – Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa
 
 
 

4 de mai. de 2014

Ricardo Antunes: “O governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais”

O Brasil se mantém como um país marcado pela insegurança e pela superexploração do trabalho, constata o sociólogo.
O entusiasmo econômico e desenvolvimentista expresso em planilhas e levantamentos sobre as taxas de desemprego no país, sustentado pelo governo federal nos últimos três mandatos presidenciais, contrapõe-se a uma análise mais crítica, quando se tem em conta a conjuntura do trabalho no Brasil. “Naturalmente, sabemos que durante esse período foram criados inúmeros empregos, e, sob este ponto de vista, comparado ao governo Fernando Henrique Cardoso, não há dúvida de que os governos Lula e Dilma foram superiores ao anterior. Digo que no conjunto é negativo, porque o Brasil não sofreu mudanças estruturais no que concerne ao trabalho”, analisa Ricardo Antunes, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. “Aumentaram os empregos formais, o que também é positivo, mas há uma enorme rotatividade da força de trabalho no país, aumentou intensamente o trabalho no setor de serviços, dando nascimento a um novo proletariado precarizado. Trata-se de um emprego em que a precarização é a constante”, complementa.
Ao fazer um balanço do mundo do trabalho nestes quase 12 anos de governo do PT à frente do Executivo federal, Ricardo Antunes considera que, no geral, a média é negativa. “O triste e recente episódio do enriquecimento de inúmeros setores envolvidos na Copa da Fifa e o monumental descontentamento popular da juventude, deste novo precariado não industrial mas de serviços, desta juventude que pega trem, ônibus e sai da periferia para trabalhar na cidade, demonstra contrariedade a esse processo, o que, por certo, não permite que meu balanço seja positivo”, avalia. “Isto é, o governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais. Por isso, vários dos setores querem a volta dele, e não é por acaso que Delfim Neto vive elogiando o governo”, frisa.
Ricardo Antunes
Ricardo Antunes

Ricardo Antunes possui mestrado e doutorado em Ciências Sociais, respectivamente pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e pela Universidade de São Paulo – USP. Realizou pós-doutorado na University of Sussex, no Reino Unido, e obteve o título de Livre Docência pela Unicamp, onde atualmente é professor titular de Sociologia.
É organizador de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil (São Paulo: Boitempo Editorial, 2006) e de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil Vol. II (São Paulo: Boitempo Editorial, 2013) e autor, entre outras obras, de O continente do labor (São Paulo: Boitempo Editorial, 2011), Adeus ao trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho (São Paulo: Cortez, 2010) e Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho (São Paulo: Boitempo Editorial, 1999) — a última, publicada nos Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Itália, Argentina, Venezuela e Colômbia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Passados quase três mandatos do governo do PT, que em 2014 completa 12 anos ininterruptos, que balanço é possível de ser feito com relação ao mundo do trabalho?
Ricardo Antunes – O balanço, no seu conjunto, é negativo. Naturalmente, sabemos que durante esse período foram criados inúmeros empregos, e, sob este ponto de vista, comparado ao governo Fernando Henrique Cardoso, não há dúvida de que os governos Lula  e Dilma foram superiores ao anterior. Digo que no conjunto é negativo, porque o Brasil não sofreu mudanças estruturais no que concerne ao trabalho. Por exemplo, aumentaram os empregos formais, o que também é positivo, mas há uma enorme rotatividade da força de trabalho no país, aumentou intensamente o trabalho no setor de serviços, dando nascimento a um novo proletariado precarizado. Trata-se de um emprego em que a precarização é a constante.
A formalização, quando existe, também é quebrada pela rotatividade ampliada. Reconheço que o governo Lula tomou algumas medidas que diminuíram o impacto da formalidade, mas é importante lembrar também que, no final do primeiro mandato, ele foi o responsável por um projeto de reforma trabalhista, no âmbito sindical, especialmente, que criava uma brecha para que o negociado se sobrepusesse ao legislado. Portanto, fazendo um olhar de conjunto, podemos dizer que o governo Lula foi menos nefasto que o governo de Fernando Henrique Cardoso.
Porém, o que se espera de um governo com assento de esquerda é que ele enfrente a questão da superexploração do trabalho. O vilipêndio, as mortes no trabalho, os sofrimentos, as terceirizações, as precarizações, as rotatividades ampliadas, o emprego supérfluo, isso não foi contentado.
Ao contrário do período anterior, em que houve a prevalência de uma economia oscilando entre um pequeno crescimento e a recessão, no governo Lula houve um crescimento econômico, e esse crescimento da economia gerou muitos empregos como estamos vendo até hoje — ainda que a situação econômica atual seja de muito mais turbulência que a do início do governo PT. Esta situação não me permite dizer que foi um governo que trouxe mudanças significativas. Ele aumentou o emprego porque houve crescimento econômico.
É imprescindível lembrar que, ao mesmo tempo que houve uma valorização pequena, mas real, do salário mínimo — pois a lei do salário mínimo no Brasil é risível para quem ocupa uma das dez maiores economias do mundo —, os grandes capitais ganharam muito dinheiro com os governos Lula e Dilma. O triste e recente episódio do enriquecimento de inúmeros setores envolvidos na Copa da Fifa e o monumental descontentamento popular da juventude, deste novo precariado não industrial mas de serviços, desta juventude que pega trem, ônibus e sai da periferia para trabalhar na cidade, demonstra contrariedade a esse processo, o que, por certo, não permite que meu balanço seja positivo.
IHU On-Line - Considerando-se que Lula vem do movimento operário, esperava-se dele iniciativas mais ousadas?
Ricardo Antunes – Se olharmos para o passado de Lula, anos 1970 e 1980, esperávamos atividades um pouco mais corajosas. Lula foi eleito, em 2002, com uma votação expressiva e teria condições, em tese, de tomar medidas mais fortes em defesa do trabalho e de mudanças estruturais. O Brasil se mantém como um país marcado pela insegurança e pela superexploração do trabalho. Apesar de a China e outros países da Ásia, a Zona Franca da América Central — Haiti, República Dominicana — e cidades do México terem níveis de superexploração mais intensos que os nossos, isso não elimina o fato de que temos intensa exploração do trabalho.
Isto o governo Lula não enfrentou, e não o fez em razão dos grandes capitais, do agronegócio, da produção de commodities; mais ainda, o ex-presidente não só abriu o nosso país a uma transnacionalização da economia, como pegou o empresariado pela mão — as empreiteiras, por exemplo — e transnacionalizou, permitindo que essas grandes empresas possam fazer outros trabalhos na América Latina, na África e em outros continentes. Isto é, o governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais. Por isso, vários dos setores querem a volta dele, e não é por acaso que Delfim Neto  vive elogiando o governo.
Quando o Lula e o PT ganharam as eleições em 2002, sabíamos que nem o Lula nem o PT eram os mesmos e, tampouco, o Brasil era o mesmo. Eles já tinham padecido de um trágico processo de desertificação neoliberal, que nos atingiu na década de 1990. Inicialmente com Collor e depois com Fernando Henrique Cardoso.
IHU On-Line – Onde houve avanços e quais pontos da agenda do trabalho permaneceram como estavam, ou pior, recuaram?
Ricardo Antunes – A melhora se deu fundamentalmente no emprego, que decorre do crescimento da economia e da relativa contenção do processo de informalização do trabalho. Mas há coisas negativas. Aumentou enormemente o processo de cooptação das entidades sindicais pelo governo Lula e depois houve mudanças com a Dilma, porque ela não tem um centésimo da experiência sindical do Lula — este foi o grande líder sindical do século XX no Brasil, e que sabia negociar com os sindicatos como ninguém.
Em seu governo, criou-se uma espécie de sindicalismo negocial de Estado, em que esta cooptação, esta servidão voluntária não foi por acaso. Lula expandiu uma medida tomada por Getúlio Vargas no final dos anos 1930, estendendo às centrais sindicais o recolhimento de imposto sindical, o que faz com que algumas centrais sindicais ganhem muito dinheiro do Estado, ao qual a Central Única dos Trabalhadores – CUT sempre disse ser contra, mas aceita, recebe e utiliza tais recursos.
Esse é um ponto muito nefasto do sindicalismo, quer de base, quer das centrais sem autonomia política, sindical e financeira, pois cria um sindicalismo negocial que depende do Estado, e se amanhã muda o governo, essa medida cai, o sindicalismo chapa branca vai ficar sem recursos.
Esse foi um ponto muito negativo, sem falar dos aspectos mais gerais, por suposto, que são decisivos. Lula preservou o superávit primário que marca a política econômica neoliberal, abriu a produção dos transgênicos, incentivou a produção de commodities; houve uma espécie de regressão do Brasil à produção da nova divisão internacional do trabalho, em que aceitamos e nos sujeitamos à produção de commodities, minérios, etanol e soja.
Evidentemente, as rebeliões de junho mostraram que a “res-pública” no Brasil tornou-se uma “res-privada”. Há uma diferença: o tucanato realiza a privatização selvagem; o PT realiza a privatização branda. Por exemplo, a Petrobras e sua crise com o pré-sal, os aeroportos. O tom é diferente, mas no substantivo ambos os governos privatizam. Essa é a triste realidade e conta como déficit do governo do PT.
IHU On-Line - O PT surge no movimento sindical. Nesse sentido, de que maneira esses 12 anos de Lula e Dilma reorganizaram a forma de atuação dos sindicatos? Os movimentos perderam força de oposição ou seguem firmes na defesa aos trabalhadores?
Ricardo Antunes – Primeiramente, gostaria de repetir que o governo Lula conseguiu um complexo processo de cooptação das centrais sindicais, especialmente a CUT, e também, em um primeiro momento, a Força Sindical; no entanto, agora com a Dilma, ensaia movimentos de contestação. Há um problema mais de fundo, que é uma mudança profunda no mundo do trabalho, uma nova morfologia do trabalho, uma classe trabalhadora mais jovem em muitos setores, há um novo proletariado no campo dos serviços que se expande sem parar. Este novo proletariado mais jovem está muito mais à margem da representação sindical.
Por exemplo, enquanto há sindicatos fortes, como dos metalúrgicos e dos bancários, não há essa força nos call centers, no telemarketing, nos setores de fast food e supermercados, entre outros. Isto cria uma dificuldade muito grande, que é um certo descolamento entre o sindicalismo de uma era na qual imperava o operariado herdeiro da fase taylorista-fordista para um outro proletariado que não se vê representado na estrutura dura da forma de organização sindical. Isto ocorre, inclusive, porque muitos destes serviços são terceirizados e quase a totalidade destes trabalhadores está fora dos marcos da representação sindical. É um problema complexo que os sindicatos vão ter que enfrentar, mas não só no Brasil, é um fenômeno que marca o sindicalismo dessa virada do século XX para o XXI em escala global.
IHU On-Line – Na opinião do senhor, quem ocupa esse espaço forte de mobilização e pressão social que antes era exercido pelos sindicatos?
Ricardo Antunes – São duas alternativas. A primeira vem de um vazio (lembre-se de que pesquisas apontaram que mais de 70% dos jovens que participaram dos levantes do Brasil eram de estudantes que trabalham, trabalhadores e jovens que estudam) de representação, e a rua, como praça pública, tornou-se o espaço cotidiano da revolta. O segundo espaço que se ampliou foi ante a ausência de sindicatos e o nascimento de movimentos sociais, que, de certo modo, são muito mais livres do que a estrutura sindical atrelada ao Estado. Nos anos 1990 e 2000 surgiu uma miríade de movimentos dos sem-teto, barrageiros, pessoas da periferia, que têm representado a organização não propriamente no espaço de trabalho, mas dos assalariados. A atuação desses cidadãos oscila entre o vácuo, a praça pública e os movimentos sociais, o que mostrou a explosão belíssima dos movimentos sociais do ano passado e que vão voltar agora — porque não pararam de vez — por ocasião da Copa do Mundo.
IHU On-Line – Qual o grande desafio do mundo do trabalho no século XXI?
Ricardo Antunes – O mundo do trabalho é uma espécie de anatomia da sociedade. O trabalho que estrutura o capital, ou seja, aquele que é desenvolvido para estruturar tal sistema, desestrutura a humanidade, o social do trabalho. Portanto, o trabalho, se quiser reestruturar a vida humana — tendo um ponto de partida para que nós possamos ter um tempo livre dotado de sentido, com fruição, tudo aquilo que é desejável e necessário para além do trabalho —, precisa destruir o capital. Esta é a chave. É por isso que há rebeliões do trabalho em Portugal, na Grécia, na Espanha, no Leste Europeu e nos países asiáticos. Há importantes greves do setor automobilístico na Índia, há greves diariamente na China. Li, recentemente, na imprensa que a China pretende devolver milhões de trabalhadores ao campo, mas eles não têm o que fazer no campo. Como um jovem que saiu do campo e foi viver nas cidades chinesas vai aceitar voltar para o campo? Tudo isso faz parte do primeiro desafio.
O segundo desafio é que o capitalismo fez com que a precarização, pela via da informalidade e da terceirização, que são fenômenos aproximados, mas não idênticos, se tornasse a regra e não a exceção. É preciso, aqui e agora, impedir esta regra, evitando que a terceirização se amplie, e mais, lutar pelo fim dela. Nenhum trabalhador em uma escola ou universidade pública, por exemplo, prefere ver o outro trabalhador com mais direitos. Temos que impedir que a terceirização, a precariedade e a informalização sejam a regra. Isso implica a reorganização dos trabalhadores, para os quais os sindicatos não são carta fora do baralho.
Do século XIX para o XX, o mundo do capitalismo mudou profundamente. Nasceu e se desenvolveu a grande indústria, que já era visível na segunda metade do século XIX, e que se expandiu no século XX com o taylorismo  e o fordismo  de grande intensidade. Aquele antigo sindicato do século XIX, herdeiro de um trabalhador dos ofícios, das manufaturas, se mostrou incapacitado, e surgiu o sindicalismo de massa. Nós transitamos do século XX para o XXI, em que esta indústria taylorista-fordista, que se mantém em vários setores, não é mais a tendência dominante, pois o que é dominante atualmente são as empresas flexibilizadas e liofilizadas, que nasceram com o toyotismo  no Japão e a chamada acumulação flexível.
Este tipo de empresa, que se expandiu pelo Ocidente, estruturada nas cadeias produtivas globais, sofreu um processo de desterritorialização e fragmentação, em que uma empresa com mais de 20 mil trabalhadores está divida em centenas de unidades esparramadas pelo mundo. Isso cria a necessidade de um novo sindicalismo mais aparentado com os movimentos sociais, que seja consentâneo com a nova morfologia do trabalho no século XXI. Não é possível que a humanidade social que trabalha veja a destruição de seus direitos, construídos ao longo de séculos, e se renda. Ainda bem que estamos vendo que a temperatura das manifestações sociais no mundo inteiro está aumentando continuamente.