A Comissão da Verdade de São Paulo abriu uma frente de investigação para
tentar cicatrizar uma das feridas mais doloridas dos anos de chumbo: os casos de
delação e os estragos – prisões, mortes e desaparecimentos – que as traições
provocaram nas organizações da esquerda armada.
Em audiência pública, nesta sexta-feira, 26, a entidade colocou em debate os
casos de dois guerrilheiros que, segundo os indícios levantados por familiares
de militantes sobreviventes e desaparecidos, foram “virados” e passaram a
colaborar com os órgãos de repressão como agentes duplos.
Um deles é Gilberto
Faria Lima, o Zorro , cuja colaboração teria ajudado a ditadura militar a
eliminar inteiramente uma das organizações da luta armada, o Movimento
Revolucionário Tiradentes (MRT). O outro é Vítor Luiz Papandreu, conhecido por
Russo e Greguinho.
Papandreu é responsabilizado pelas delações que terminaram nas prisões e
execuções no centro de tortura de Petrópolis, na região serrana do Rio,
conhecida como a Casa da Morte. Ele teria participado da armadilha em que foi
pego e assassinado Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, conhecido na luta
armada por Breno, amigo da presidente Dilma Rousseff e um dos principais
dirigentes das organizações em que ambos militaram, a última delas a
VAR-Palmares.
Zorro é o caso mais emblemático. A esquerda tem evidências de que esteja vivo
e morando clandestinamente no Rio de Janeiro. É suspeito de ter delatado vários
militantes em São Paulo entre 1970 e 1971 e, mais tarde, se infiltrado entre os
grupos de brasileiros banidos pelo regime militar e asilados no Chile e
Argentina.
Ao lado do espião
uruguaio Alberto Conrado Avegno , Zorro teria ajudado a formar o embrião da
chamada Operação Condor, o esquema de espionagem que uniu as ditaduras da
América do Sul.
Num emocionado relato, a ativista Ieda Seixas, presa, torturada e encarcerada
um ano e meio sem sentença por ser filha de um dos homens mais procurados à
época, o mecânico Joaquim Alencar Seixas, dirigente do MRT, disse que Zorro
teria colaborado com a armação do cerco em que foi fuzilado, no dia 17 de abril
de 1971, Dimas Antônio Casemiro, o “Rei”, morto num dos “aparelhos” da
organização, uma casa no Bairro do Ipiranga. Zorro estava com “Rei” e
desapareceu em meio ao tiroteio.
Instantes depois da execução de Casemiro, Ieda ouviu um policial dizer
calmamente que Zorro havia escapado, correndo pela rua dos fundos da casa. Ela
apontou dois detalhes que contrariavam a lógica de uma fuga naquelas
circunstâncias: o quarteirão estava inteiramente cercado e ela se encontrava na
mesma rua citada pelo policial, mas não viu ninguém passar.
O militante reagiu ao cerco, trocando tiros com os policiais. “Rei levou
vários tiros de fuzil, caiu de bruços, com a boca no cascalho da rua”, lembra
Ieda. Só anos depois, juntando as peças do quebra cabeças, é que ela e os demais
militantes concluíram que Zorro, preso pelo Centro de Informações da Marinha
(Cenimar) no Rio um ano antes, havia se tornado agente duplo.
Ieda também listou vários outros episódios em que o guerrilheiro, com uma
calma anormal para quem vivia a adrenalina da época, desaparecia e depois
retornava tranquilamente, enquanto outros militantes acabam caindo nas mãos da
polícia.
“Escapava como o cara da capa e espada (o super-herói mascarado de quem
herdou o apelido) e, ao contrário dos outros, nunca estava tenso”, contou Ieda.
Reconstruindo os episódios da época, acha que o ex-companheiro tornara-se um
psicopata frio. “É um demônio”, diz.
A Zorro são atribuídas também a prisão e morte do ex-major Joaquim Pires
Cerveira e João Batista Rita, apanhados quando tentavam retornar ao país, em
1973. O ex-guerrilheiro teria se infiltrado entre os banidos que se encontravam
no Chile e na Argentina.
Queima de arquivo
No grupo das vítimas da traição está também outro integrante do MRT, Aderval
Alves Coqueiro, delatado, segunda filha do ex-militante, Célia Coqueiro, por
Greguinho. Coqueiro foi fuzilado num cerco no Cosme Velho, no Rio de Janeiro, no
dia 6 de fevereiro de 1971. Era o primeiro de mais de duas dezenas de militantes
banidos que foram executados ao retornar clandestinamente ao país.
O destino de Greguinho também é marcado pela tragédia. Foi eliminado pelos
órgãos de repressão no interior da Casa da Morte, em Petrópolis como queima de
arquivo em 1971. Célia diz que o delator de seu pai teria adotado comportamento
“inadequado” e, com transtornos psicológicos, acabou executado por não ter mais
utilidade aos órgãos de repressão. Em 2001 a Justiça Federal reconheceu a
responsabilidade do estado e mandou o governo indenizar a família de
Papandreu.
Organização destroçada
Entre fevereiro e abril de 1971, as delações destruíram o MRT, organização
operária formada pelo mesmo grupo que fundou, em 1963, o Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, de onde emergiria no final dos anos 1970
o líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Seus militantes, todos
trabalhadores comunistas, com longa militância política, eram originários do
PCB, PC do B e, por último, da Ala Vermelha, um ramo dissidente do PC do B que
optou pelas ações mais radicais contra a ditadura. O “grupo de fogo” da
organização era formado por, no máximo, 10 integrantes.
Quando destroçado, o MRT tinha apenas oito homens na linha de frente, quase
todos – a exceção é o jornalista Ivan Seixas, coordenador da Comissão da Verdade
paulista – mortos em cercos de rua ou sob tortura, como o líder do grupo,
Devanir José de Carvalho, o “Henrique”, e Joaquim Seixas, o “Roque”, pai de Ivan
e de Ieda. Era retaliação aos assassinatos (ou justiçamentos, como a esquerda
chama) de apoiadores da ditadura.
O MRT tinha também uma característica curiosa: o envolvimento de famílias
inteiras na luta armada. É o caso dos irmãos Carvalho (Devanir, Derli, Joel,
Jairo e Daniel) e, o exemplo mais clássico, da família Seixas, onde só um menino
de dez anos não se tornou militante. Ivan, com 16 anos, militante de peso na
luta arma, foi apanhado junto com o pai, Joaquim Seixas, torturados juntos na
mesma cela.
No mesmo dia a polícia prendeu também a mãe, Fanny, e duas irmãs, Ieda e
Iara, todas recolhidas nas mesmas dependências onde Joaquim seria morto sob
tortura. “A família era uma organização”, brincou o deputado Adriano Diogo,
presidente da comissão paulista. Todos cumpriram pena por causa da militância de
Joaquim e Ivan, que provavelmente não tenha sido morto porque era menor de
idade, tornando-se o único sobrevivente do “grupo de fogo” do MRT daquele
período.
FONTE: IG.COM
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