28 de abr. de 2013

Agentes duplos entram na mira da Comissão da Verdade de São Paulo

A Comissão da Verdade de São Paulo abriu uma frente de investigação para tentar cicatrizar uma das feridas mais doloridas dos anos de chumbo: os casos de delação e os estragos – prisões, mortes e desaparecimentos – que as traições provocaram nas organizações da esquerda armada.
Em audiência pública, nesta sexta-feira, 26, a entidade colocou em debate os casos de dois guerrilheiros que, segundo os indícios levantados por familiares de militantes sobreviventes e desaparecidos, foram “virados” e passaram a colaborar com os órgãos de repressão como agentes duplos.
Um deles é Gilberto Faria Lima, o Zorro , cuja colaboração teria ajudado a ditadura militar a eliminar inteiramente uma das organizações da luta armada, o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT). O outro é Vítor Luiz Papandreu, conhecido por Russo e Greguinho.


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O papel do ex-guerrilheiro Zorro como traidor teria sido definido em meados de 1970
Papandreu é responsabilizado pelas delações que terminaram nas prisões e execuções no centro de tortura de Petrópolis, na região serrana do Rio, conhecida como a Casa da Morte. Ele teria participado da armadilha em que foi pego e assassinado Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, conhecido na luta armada por Breno, amigo da presidente Dilma Rousseff e um dos principais dirigentes das organizações em que ambos militaram, a última delas a VAR-Palmares.
Zorro é o caso mais emblemático. A esquerda tem evidências de que esteja vivo e morando clandestinamente no Rio de Janeiro. É suspeito de ter delatado vários militantes em São Paulo entre 1970 e 1971 e, mais tarde, se infiltrado entre os grupos de brasileiros banidos pelo regime militar e asilados no Chile e Argentina.
Ao lado do espião uruguaio Alberto Conrado Avegno , Zorro teria ajudado a formar o embrião da chamada Operação Condor, o esquema de espionagem que uniu as ditaduras da América do Sul.
Num emocionado relato, a ativista Ieda Seixas, presa, torturada e encarcerada um ano e meio sem sentença por ser filha de um dos homens mais procurados à época, o mecânico Joaquim Alencar Seixas, dirigente do MRT, disse que Zorro teria colaborado com a armação do cerco em que foi fuzilado, no dia 17 de abril de 1971, Dimas Antônio Casemiro, o “Rei”, morto num dos “aparelhos” da organização, uma casa no Bairro do Ipiranga. Zorro estava com “Rei” e desapareceu em meio ao tiroteio.
Instantes depois da execução de Casemiro, Ieda ouviu um policial dizer calmamente que Zorro havia escapado, correndo pela rua dos fundos da casa. Ela apontou dois detalhes que contrariavam a lógica de uma fuga naquelas circunstâncias: o quarteirão estava inteiramente cercado e ela se encontrava na mesma rua citada pelo policial, mas não viu ninguém passar.


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Zorro chegou a ser condenado a pena de morte por assassinatos na ditadura

O militante reagiu ao cerco, trocando tiros com os policiais. “Rei levou vários tiros de fuzil, caiu de bruços, com a boca no cascalho da rua”, lembra Ieda. Só anos depois, juntando as peças do quebra cabeças, é que ela e os demais militantes concluíram que Zorro, preso pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar) no Rio um ano antes, havia se tornado agente duplo.
Ieda também listou vários outros episódios em que o guerrilheiro, com uma calma anormal para quem vivia a adrenalina da época, desaparecia e depois retornava tranquilamente, enquanto outros militantes acabam caindo nas mãos da polícia.
“Escapava como o cara da capa e espada (o super-herói mascarado de quem herdou o apelido) e, ao contrário dos outros, nunca estava tenso”, contou Ieda. Reconstruindo os episódios da época, acha que o ex-companheiro tornara-se um psicopata frio. “É um demônio”, diz.
A Zorro são atribuídas também a prisão e morte do ex-major Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita, apanhados quando tentavam retornar ao país, em 1973. O ex-guerrilheiro teria se infiltrado entre os banidos que se encontravam no Chile e na Argentina.
Queima de arquivo

No grupo das vítimas da traição está também outro integrante do MRT, Aderval Alves Coqueiro, delatado, segunda filha do ex-militante, Célia Coqueiro, por Greguinho. Coqueiro foi fuzilado num cerco no Cosme Velho, no Rio de Janeiro, no dia 6 de fevereiro de 1971. Era o primeiro de mais de duas dezenas de militantes banidos que foram executados ao retornar clandestinamente ao país.
O destino de Greguinho também é marcado pela tragédia. Foi eliminado pelos órgãos de repressão no interior da Casa da Morte, em Petrópolis como queima de arquivo em 1971. Célia diz que o delator de seu pai teria adotado comportamento “inadequado” e, com transtornos psicológicos, acabou executado por não ter mais utilidade aos órgãos de repressão. Em 2001 a Justiça Federal reconheceu a responsabilidade do estado e mandou o governo indenizar a família de Papandreu.

Organização destroçada

Entre fevereiro e abril de 1971, as delações destruíram o MRT, organização operária formada pelo mesmo grupo que fundou, em 1963, o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, de onde emergiria no final dos anos 1970 o líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Seus militantes, todos trabalhadores comunistas, com longa militância política, eram originários do PCB, PC do B e, por último, da Ala Vermelha, um ramo dissidente do PC do B que optou pelas ações mais radicais contra a ditadura. O “grupo de fogo” da organização era formado por, no máximo, 10 integrantes.
Quando destroçado, o MRT tinha apenas oito homens na linha de frente, quase todos – a exceção é o jornalista Ivan Seixas, coordenador da Comissão da Verdade paulista – mortos em cercos de rua ou sob tortura, como o líder do grupo, Devanir José de Carvalho, o “Henrique”, e Joaquim Seixas, o “Roque”, pai de Ivan e de Ieda. Era retaliação aos assassinatos (ou justiçamentos, como a esquerda chama) de apoiadores da ditadura.
O MRT tinha também uma característica curiosa: o envolvimento de famílias inteiras na luta armada. É o caso dos irmãos Carvalho (Devanir, Derli, Joel, Jairo e Daniel) e, o exemplo mais clássico, da família Seixas, onde só um menino de dez anos não se tornou militante. Ivan, com 16 anos, militante de peso na luta arma, foi apanhado junto com o pai, Joaquim Seixas, torturados juntos na mesma cela.
No mesmo dia a polícia prendeu também a mãe, Fanny, e duas irmãs, Ieda e Iara, todas recolhidas nas mesmas dependências onde Joaquim seria morto sob tortura. “A família era uma organização”, brincou o deputado Adriano Diogo, presidente da comissão paulista. Todos cumpriram pena por causa da militância de Joaquim e Ivan, que provavelmente não tenha sido morto porque era menor de idade, tornando-se o único sobrevivente do “grupo de fogo” do MRT daquele período.

FONTE: IG.COM

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