Os candidatos que surpreenderam por suas intenções de voto em algumas cidades podem não ser apenas “azarões”. Talvez sejam a face mais evidente de um fenômeno político que junta fé, dinheiro e comunicação de massa. Uma legião de candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador será eleita fazendo uso dessa receita.
Antonio Lassance
Há algo de novo por trás dos azarões Os candidatos que surpreenderam por suas intenções de voto em algumas cidades do país podem não ser apenas “azarões”. Talvez sejam a face mais evidente de um fenômeno político que junta fé, dinheiro e comunicação de massa.
Os casos mais gritantes têm sido, até o momento, Celso Russomano, em São Paulo, e Ratinho Jr., em Curitiba. Mas eles não são os únicos. Ao contrário, expressam uma fórmula que tem feito sucesso. Não é um fenômeno que tende a tomar conta da política brasileira. Não representa um setor social majoritário. Não se vincula a um rígido padrão de classe. Mas se trata de uma maneira de se fazer política que tem ganhado corpo paulatinamente.
Uma legião de candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador será eleita fazendo uso dessa receita. Estarão alinhados aos que já têm assento federal. Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP, 2011), a bancada evangélica eleita em 2010 mais que dobrou em relação à de 2006, passando de 36 integrantes para 73 parlamentares.
A fórmula garante sucesso pessoal, financeiro e político. É um meio de vida que tem na política um de seus braços; na comunicação, sua voz; na religião, sua plataforma.
Embora retrógrado em vários sentidos, o neoconservadorismo religioso é um fenômeno de novo tipo. Por sua relação umbilical com a religião e a comunicação de massa, não se equipara a qualquer espécie anterior de populismo. O neoconservadorismo também é uma novidade em relação ao velho conservadorismo elitista, golpista e liberal. Aquele conservadorismo da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de 1964, e que fez da Teologia da Libertação seu principal inimigo, nos anos 1970 e 1980, colhe agora o fruto do que plantou: o maior retrocesso do catolicismo em todos os tempos, seu afastamento entre os mais pobres, sua dificuldade em modernizar-se.
Segundo os dados do Censo de 2010, os evangélicos foram o segmento religioso que mais cresceu no Brasil nos últimos 10 anos. Saltaram de 15,4% da população para 22,2%. Passaram de 26,2 milhões para 42,3 milhões de brasileiros. Em 1980, esse percentual era de apenas 6,6%. (IBGE, 2010)
Os católicos, que em 2010 ostentaram um poderoso número de 64,6% da população, coincidentemente têm seu menor percentual no Rio de Janeiro (45,8%), estado onde o conservadorismo ortodoxo e o combate à Teologia da Libertação tinha sua organização mais consistente e sua liderança mais expressiva, Dom Eugênio Sales, arcebismo do Rio por 30 anos.
Não é na chamada “nova” classe média que o segmento evangélico mais cresce. É entre mais pobres. Mais de 60% dos pentecostais recebem até 1 salário mínimo. A segunda maior proporção está entre os sem religião (59,2% deles são pobres). Os católicos têm apenas a terceira maior proporção nessa faixa de renda (55,8% ).
O neoconservadorismo gosta de Estado, de políticas sociais, da promoção da igualdade. Talvez por razões cristãs, mas também porque se beneficiam dos tempos de bonança. Podem obter retribuição crescente dos fiéis que se julgam recompensados por alcançarem uma graça (emprego, pagamento de dívidas, aumento de salário, um tratamento médico).
Demagogos modernos As características socioeconômicas ajudam a entender, mas são insuficientes para explicar o fenômeno por completo. Elas precisam ser vistas à luz da montagem de uma poderosa máquina política a serviço do neoconservadorismo religioso. Os nomes lançados à disputa municipal não foram escolhidos por sua posição na hierarquia religiosa. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, apenas 765 candidatos se declararam “sacerdote ou membro de ordem ou seita religiosa”, sendo apenas 37 os candidatos a prefeito (apenas 0,24% do total), 39 vice-prefeitos (0,26%) e 689 (0,16%) os candidatos a vereador nessa condição, incluindo todas as denominações religiosas. (TSE, 2012)
A relação dos candidatos com suas igrejas é certamente um senhor reforço, na medida em que estão colados aos pastores que fazem sua pregação eleitoral de forma ostensiva, no púlpito e com o dinheiro dos fiéis, e a siglas partidárias patrocinadas por tais igrejas. Mas, para que os candidatos sejam competitivos, precisam de algo mais. Esse algo mais atende pelo nome de comunicação de massa.
Em um sistema eleitoral no qual as campanhas são muito curtas, o eleitor é cego diante de muitos candidatos, e o comunicador reina. O maior problema de um candidato é se tornar conhecido. O segundo é evitar ser rejeitado (conhecido negativamente).
O comunicador tem um horário eleitoral gratuito todo santo dia à sua disposição, conquistado, é bem verdade, por dotes pessoais. Ele deve ter talento na arte de atrair a atenção, de mobilizar paixões e ódios, de mexer com o sentimento das pessoas. Quando isso envolve pregação religiosa, a fidelidade tem tudo para ser bastante forte. O suficiente para aguentar três meses de campanha sob fogo cruzado.
O neoconservadorismo religioso pode ser uma novidade também por colher os frutos de um processo plantado desde 1997, quando se abriu espaço para uma nova leva de emissoras de rádio e TV e à renovação de antigas concessões. Em muitos casos, elas mudaram de dono e foram parar nas mãos de organizações religiosas, a ponto de se ter formado uma grande rede nacional de emissoras diretamente associada a uma dessas igrejas. Além disso, se tornou prática costumeira o aluguel de tempo de TV para programas de pregação religiosa. Algo aconteceu naquela época que transformou os evangélicos em uma força de grande peso midiático, antes mesmo de se tornarem uma força política e social de maior expressão.
Max Weber, no seu famoso texto em que distinguia os políticos que viviam para a política daqueles que viviam da política, chamava a atenção para o fato de que o jornalista havia se tornado o grande demagogo moderno. Tomava a expressão em seu sentido clássico, ou seja, referindo-se a quem tinha o talento especial de ser um mestre na arte de convencer o público a tomar partido, a se decidir a favor ou contra uma opção.
A velha mídia tem feito um convite diário à demagogia por meio da esculhambação do entendimento sobre a política. A disseminação da descrença nas instituições faz grassar o moralismo rasteiro e a fé ritualística que disputa o lugar do debate sobre propostas. O neoconservadorismo agradece. Mesmo seus representantes mais toscos têm muito mais a dizer do que os candidatos engomados e da predileção indiscreta da mídia mais tradicional.
Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
Artigo publicado no site da Agência Carta Maior
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