9 de mar. de 2010

O Haiti é aqui e lá.

Internacional
Jornal da APUG
Às vezes nos perdemos nos acontecimentos de nosso universo pessoal, do mundo do trabalho, da família e nos afazeres cotidianos, e as tragédias sociais e acontecimentos distantes parecem não nos dizer respeito. Em 12 de janeiro de 2010, um terrível terremoto atingiu o povo haitiano. Além de prédios atingidos, milhares de pessoas morreram.
Na perspectiva de que "nada que é humano nos deve ser estranho", o Jornal da APUG entrevistou o professor, jornalista e militante haitiano Franck Seguy, que participou da abertura do 29◦ Congresso do ANDES-SN, realizado de 25 a 31 de janeiro, em Belém do Pará. Na entrevista exclusiva concedida ao Jornal da APUG, Seguy afirmou que é preciso que todos saibam da verdadeira história do Haiti e explica porque o terremoto que colocou o Haiti nas manchetes dos jornais de todo o mundo é apenas uma face da tragédia que assola o país mais pobre das Américas.
J.A.- Porque o Sr. afirmou em sua palestra que o povo brasileiro não sabe o que de fato está acontecendo no Haiti? E porque essa calamidade deve abrir os olhos do mundo para o seu país.
Franck Seguy - Porque apesar da imensa solidariedade dos brasileiros, na sua maioria não sabem que o terremoto é apenas a ponta do iceberg da tragédia social que se abate sobre os haitianos. Primeiro porque as calamidades já acontecem no cotidiano do Haiti e a intensidade dos últimos terremotos e a quantidade de pessoas mortas além de serem excepcionais vão agravar ainda mais a construção sócio-histórica do país. No Haiti, existe uma expressão "República de Porto Príncipe", pra dizer que o país estava reduzido à capital. Uma cidade construída para receber 250 mil pessoas, mas onde havia 3 milhões morando lá. Essas pessoas deixaram a região natal para morar na capital porque é lá que estão, praticamente, os únicos hospitais, a universidade pública, a administração também. Tudo estava concentrado em Porto Príncipe e agora nem mais ela existe. E, para piorar a situação, o terremoto gerou uma situação de aproveitamento político-militar de ocupação, principalmente dos EUA.
J.A.- Mas os EUA, o Brasil e os outros países não estão apenas ajudando o povo e o país a se recuperar?
Franck Seguy - É preciso que todos saibam que o Haiti foi o primeiro país independente da América Latina, mas não foi tolerado nem pelo colonizador francês, nem pelos Estados Unidos, país escravocrata. O Haiti é um país que, com a cumplicidade das elites, teve que, no curso do século XIX, pagar à França sua independência, e que, no século XX, sofreu vinte anos de ocupação americana (de 1915 a 1934) para finalmente cair nas mãos cruéis da família Duvalier, com a bênção dos Estados Unidos, em nome do anticomunismo. Esta dominação e exploração da oligarquia local se aprofundaram com a abertura dos mercados, arruinando a agricultura local; com os ajustes estruturais, impossibilitando investimentos sociais e com a legitimação da classe dominante, a elite moralmente repugnante, que sempre levou o povo à miséria, à exploração e ao abandono. Agora, com o terremoto, é a 4◦ vez que os EUA ocupam o Haiti. Na primeira vez, em 1915, eles expulsaram milhares de haitianos para Cuba, República Dominicana. Tomaram as melhores terras, escravizaram milhares de cidadãos. Agora, o que eles querem é que as companhias norte-americanas reconstruam o país e termine de exaurir o que resta de riquezas no país, a preocupação efetiva não é com o povo. Mas eu pergunto, pra que tanto soldados se o que o povo precisa é de médicos, enfermeiros, paramédicos. O país não está em guerra, mas a maioria dos países estão enviando basicamente soldados. Hoje há no Haiti mais de 1 milhão de pessoas desabrigadas, doentes, famintas e desamparadas socialmente. E a "intervenção humanitária" em curso por parte dos Estados Unidos se faz acompanhar de uma força-tarefa de 20 mil soldados que tomou controle do aeroporto e das instalações portuárias e que junto com uma força quantitativamente igual, a da MINUSTAH, comandada pelo Brasil, coordena praticamente tudo no país, hoje. Esta intervenção americana é a terceira em dezesseis anos. A reação dos EUA foi olímpica, bateu recorde de rapidez e midiática, digna do Oscar do Oportunismo, sequer se lembrando de dialogar com a ONU e planejar melhor as coisas com a missão brasileira que já vinha liderando as operações por lá. Passaram a controlar do jeito deles toda a ajuda estrangeira e, o que foi efetivamente controverso, mandaram inicialmente 12.000 soldados para "passear" no Haiti, como se o povo nativo fosse apático e não tivesse braços para acolher os feridos e pernas para avançar no enfrentamento de seus dramas, contando necessariamente com o suporte já estabelecido (e que passaria por emergencial ampliação) de vários organismos e serviços humanitários, incluindo relevantes ações cubanas de saúde. Tanto foi assim que depois do terremoto, o Presidente Préval enfrenta uma oposição que exige sua demissão por incompetência: permitiu que os EUA passassem a mandar e deixou a sobrevivência do país nos braços de potências estrangeiras.
J.A. Qual tem sido o papel da MINUSTAH (Missão das Nações Unidas Para a Estabilização do Haiti, instituída em abril de 2004 e coordenada pelo Brasil)?
Franck Seguy - A Minustah só tem tido o papel de reprimir o povo, os estudantes, os professores. O inverso do que é mostrado na mídia. O papel do Brasil, infelizmente, tem sido o de reprimir o povo haitiano. A perseguição aos dirigentes de esquerda e militantes sociais aumentou e muito depois do terremoto, alguns estão sendo assassinados como foi o exemplo do professor Jean Anil Louis-Juste, professor de Sociologia e Presidente da ASIA (Associação Universitária Dessaliniana). O professor Jean Anil havia estudado no Brasil, feito mestrado e doutorado na UFPE e tinha pouco tempo que havia retornado ao Haiti.
J.A. Mas a ajuda internacional não tem sido efetiva?
Franck Seguy - Olha, o Haiti já vive numa situação de tragédia ambiental, social e econômica há algum tempo. Em 2004, houve um furacão, desabrigando milhares de pessoas, e apenas 2% do discurso de ajuda humanitária foram efetivados. Hoje não será diferente, as promessas são muitas, mas é preciso perceber que os empréstimos oferecidos se converterão em dívidas futuras e a maioria das doações não se efetivarão. Numa situação de miséria extrema e cataclisma ambiental e social, o que estamos vendo mesmo é o aumento da repressão e dos interesses imperialistas que querem acabar de destruir o meus país. Ou o Haiti se liberta ou irá desaparecer.
J.A. A calamidade que se instaurou no Haiti veio abrir os olhos do mundo para a pobreza da população?
Franck Seguy - Eu acho que não. Como eu já disse, calamidades já aconteceram várias vezes no Haiti. A intensidade dos últimos terremotos e a quantidade de pessoas mortas são excepecionais, mas a calamidade no Haiti é a regra. O Caribe é uma região onde acontecem todos os anos muitos furacões. Em 2008, passaram 4 furações pelo Haiti. A pobreza no Haiti é uma construção sócio-histórica. Nas duas colonizações que sofremos, a espanhola e a francesa, tivemos 45% do meio ambiente haitiano destruídos. Com a primeira ocupação militar norte-americana, as empresas dos Estados Unidos continuaram destruindo sistematicamente o meio-ambiente. Uma parte do território do Haiti se transformou em deserto. No final dos anos 70, os Estados Unidos mataram todos os porcos haitianos porque o porco era a maior facilidade dos camponeses para se sustentarem e eles (EUA) precisavam de mão-de-obra para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar da República Dominicana. As terras camponesas foram roubadas e transformadas em desertos. A pobreza no Haiti não é algo que vem do céu ou de outro lugar. Após a independência do Haiti, houve diversas ocupações militares no país e qualquer pessoa que conseguiu se organizar contra as ocupações foi assassinada. O Eduardo Galeano (jornalista e escritor uruguaio) fala que o Haiti está pagando um preço muito alto por ter sido o primeiro país a se libertar da escravidão. No Haiti, a escravidão foi abolida primeiro. A chamada comunidade internacional se liga contra este exemplo que ela não quer mais ver se repetir na história. Querem mostrar que o Haiti errou. Deveria ter esperado mais o país se libertar, para libertar seus escravos. Esse exemplo que ele deu ao mundo foi errado. Até esses terremotos estão sendo usados contra a população do Haiti. Já ouvi sobre muitos brasileiros solidários que doaram comida e água, mas o Exército brasileiro não as entregou como o povo brasileiro esperava.
J.A. Você acredita que o Haiti um dia será realmente livre?
Franck Seguy- Eu acho que vai acontecer duas coisas: ou o Haiti vai desaparecer ou vai se libertar. Na consciência do povo haitiano, não há outro meio como viver. Para o povo falta o meio para lutar por sua liberdade agora. Mas isso é uma coisa que está escrito na bandeira haitiana: "Viver livre ou morrer". Não conhecemos outra opção. Há outros esforços que incentivam outra opção. Mas o haitiano conhece apenas essas duas opções. Não será o Brasil ou os Estados Unidos ou as Nações Unidas que, finalmente, possibilitarão aos haitianos uma cidadania real. A (re)construção do país se fará na tomada de consciência de todos os segmentos da população. A catástrofe a enfrentar não resulta só do terremoto de janeiro de 2010, mas da história sofrida do povo do Haiti.

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