Republicamos abaixo o texto escrito pelo candidato do PSOL à presidência, Plínio Arruda Sampaio, sobre a questão do aborto. O texto foi escrito em setembro de 2006, quando Plínio era candidato ao governo do estado de São Paulo.
Plínio Arruda Sampaio
Como cristão, meu posicionamento pessoal diante do problema do aborto é ditado pelos valores da minha fé. Felizmente não tive, no decurso dos meus cinquenta anos de casamento, necessidade de enfrentar essa questão. Por isso, sempre a abordo com muita humildade e com espirito de solidariedade pelos que se veêm na contingência de enfrentá-la.
Como candidato a um posto de comando na estrutura de poder do Estado, minha posição precisa levar em conta a dimensão social e política do problema e o caráter da sociedade em que vivo – uma sociedade plural. Nesta condição, sou obrigado a cumprir a lei estabelecida e a contribuir, como minha opinião, para a formulação de uma lei que responda ao consenso ético da sociedade sobre o assunto.
Segundo as estatísticas centenas milhares de mulheres morrem ou sofrem danos físicos psicológicos graves em razão da ocorrência de um milhão e quatrocentos mil abortos clandestinos todos os anos. Trata-se, portanto, de um sério problema de saúde pública.
As medidas que o Estado brasileiro adotou para fazer frente a esse problema dividem hoje a sociedade: descriminalização e legalização constituem as reivindicações principais.
Apoio o movimento em favor da descriminalizaçào do aborto porque, evidentemente, a lei atual demonstrou ser, não apenas ineficaz, mas claramente perniciosa, uma vez que obriga as mulheres a recorrer a pessoas despreparadas e inescrupulosas para interromper uma gravidez indesejada.
Em uma sociedade pluralista, o Estado não tem o direito de impor uma convicção fundada na fé de uma parcela da sociedade a pessoas que têm convicção diferente. Nesse tipo de sociedade, a posição do governante em relação aos costumes das pessoas deve ser ditada pela consciência ética coletiva a respeito desses problemas. A consciência ética coletiva do povo brasileiro não mais considera, como outrora, que a prática do aborto seja uma conduta anti-ética a ser penalizada pelo Estado.
Mas essa mesma consciência coletiva não admite a banalização do aborto e, muito menos, sua exploração para fins comerciais. Pelo contrário, todos consideram o aborto um mal, o qual, contudo, em determinadas circunstâncias, não pode ser evitado. Por isso, o Estado deve empenhar-se em preveni-lo, o que requer, além da descriminalização, a legalização e consequente regulamentação da intervenção abortiva.
Legalizar quer dizer submeter uma determinada atividade ou conduta humana à disciplina da lei. No sistema jurídico brasileiro, o que não é proibido é permitido, e o que não é permitido dá origem, automaticamente, a uma sanção estatal.
A legalização do aborto não pode ser entendida como a simples exclusão da pratica abortiva do campo do direito, como se a vida do nascituro não fosse um bem protegido pelo Estado. Pelo contrário, exatamente porque o Estado tem o dever de proteger o nascituro, a legalização do aborto deve abranger a montagem de um complexo sistema de ações estatais, articuladas com ações de entidades da sociedade civil, a fim de combater a sua banalização e a sua exploração comercial.
Isto quer dizer que a lei deverá definir o aborto lícito e distingui-lo do aborto ilícito, bem como estabelecer o efeito da lei em um e outro caso.
A questão central que surge então diz respeito à autoridade à qual caberá a decisão de usar os procedimentos de interrupção da gravidez. Penso que essa autoridade deve ser a própria gestante. A ela e a mais ninguém cabe o direito e a responsabilidade dessa terrível decisão. Fundamento essa afirmação na certeza de que o instinto maternal defende com mais empenho o feto do que médico, juiz, sacerdote, conselheiro familiar, psicólogo ou quem quer que seja. Mas, para auxiliar a mulher nesse terrível e solitário passo é preciso revestir sua decisão de um procedimento legal adequado.
O que importa para o Estado é que a decisão da mulher seja tomada livre, consciente e responsavelmente nas fases iniciais da gestação. O aborto não pode ser fruto da frivolidade, da ignorância das suas graves consequências físicas e psicológicas, de um impulso momentâneo da mulher que descobre estar grávida, da pressão de terceiros, mas a conclusão amadurecida de uma reflexão profunda acerca das suas condições pessoais de ser mãe responsável e educar o ser que se desenvolve em seu ventre.
A legalização oferecerá à gestante os elementos indispensáveis para a sua reflexão e procurará comprovar o caráter livre da sua decisão. Por isso entendo que a legalização do aborto requer a montagem de um sistema integrado por três grandes estruturas: uma estrutura destinada à educação sexual da juventude e à vigilância dos costumes, a fim de combater a exploração comercial e delituosa do erotismo juvenil – uma das fontes da banalização do sexo e consequentemente do aumento do número de abortos; uma estrutura destinada a fiscalizar as intervenções abortivas, informando a gestante sobre as várias dimensões da sua decisão de interromper a gestação; e uma estrutura, devidamente financiada com verbas do Estado, para atender às gestantes pobres nos hospitais públicos e para amparar crianças cujas mães não têm condições de criá-las, porque, obviamente, a certeza de contar com um apoio eficaz para educar o filho estimulará a gestante a levar a termo a gravidez.
O elemento articulador dessas estruturas seria o Juizado da Família. Ao juiz de Família caberia autorizar uma unidade hospitalar e um médico a interromper a gravidez após a manifestação formal da vontade livre, informada e responsável da gestante em procedimento judicial específico.
Não cabe, contudo, ao juiz decidir pela gestante. Sua decisão é de natureza declaratória. Comprovado que a gestante teve à sua disposição os elementos requeridos para tomar responsavelmente sua decisão – a informação e o aconselhamento – ele autoriza a intervenção em tempo hábil. Sem a autorização judicial, o médico e o hospital que realizarem a intervenção sujeitar-se-ão às penas da lei.
O aconselhamento requer a entrevista da gestante com um conselheiro que a ela exporá o que significa interrupção da gravidez, sem contudo fazer inquirições ou admoestações que impliquem invasão à privacidade da mulher. Por isso mesmo, esse processo – de rito sumaríssimo, evidentemente – deverá ser realizado em segredo de justiça.
A exposição feita até aqui deixa ver que a interferência do governo na questão aborto diz respeito à montagem das duas estruturas integrantes do sistema de prevenção e de fornecimento de atenção médico hospitalar gratuita para realização de intervenções abortivas em mulheres pobres.
Evidentemente, enquanto o aborto não for descriminalizado, os hospitais públicos não poderão realizar a intervenção. Mas nada impede que as estruturas de educação sexual e de amparo à criança cuja mãe não pode criá-la, sejam desenvolvidas, como uma medida para atenuar o problema enquanto não se consegue uma solução definitiva na esfera federal.
FONTE: www.plinio50.com.br
14 de ago. de 2010
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