8 de jan. de 2010

A DOENÇA DA INSEGURANÇA.

Por Chico Alencar, deputado federal PSOL/RJ

As décadas de repressão e ditadura militar que a esquerda brasileira viveu, mais recentemente, nos afastaram de um debate decisivo: o da segurança pública e da percepção dos policiais como servidores numa ordem ao menos formalmente democrática, como a nossa. Segurança, de que tanto carecem os grandes centros urbanos do Brasil de hoje, é um direito social a ser garantido por políticas públicas. Políticas no plural mesmo: segurança pública é uma questão grave demais para ser apenas caso de polícia. Envolve educação, cultura, moradia digna, emprego decente, humanização da vida.
No Rio de Janeiro, estado no qual a violência mais reverbera e ceifa vidas, a política de segurança pública adotada pelo governo Sergio Cabral, baseada no confronto, não difere muito das adotadas por seus antecessores, ocupantes do Palácio Guanabara. As intervenções implementadas por Moreira Franco (1987-1991), que prometera acabar com a violência em seis meses, e também por Marcelo Alencar (1995-1999), que instituiu a gratificação faroeste, são exemplos robustos de políticas equivocadas. Os autos de resistência – utilizados como forma de justificar as ditas mortes nem sempre em confronto –, criados na ditadura militar e reeditados em 1996, reforçam esta análise.
A truculência e a débil utilização dos aparatos de inteligência policial são marcas características dessas políticas, baseadas em operações espetaculosas, geralmente concebidas como forma de dar algum tipo de resposta à sociedade amedrontada. Os cidadãos têm muitas razões para sentir esses temores.
Em todas essas gestões – com raras exceções – os Direitos Humanos foram secundarizados. A pretexto de coibir o varejo do tráfico de entorpecentes nas favelas – cada vez mais armado e letal –, as forças de segurança cometem muitas atrocidades. Espancamentos de moradores, intimidação de trabalhadores, achaques a comerciantes e morte de inocentes são práticas disseminadas. Claro que esses abusos não acontecem somente contra os mais pobres. Os verdadeiros barões das drogas e os senhores das armas não estão refugiados nesses locais. É visível o despreparo de nossos policiais, mal pagos, pessimamente treinados e comandados por autoridades que têm pouca ou nenhuma sensibilidade humanitária. Ainda herança da ditadura?
Não fosse a CPI das Milícias, presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ), esse “embrião de máfia”, inoculado no cerne do poder estatal, ainda seria tratado como um grupo de “autodefesa comunitária”. Foi dessa forma que o ex-prefeito carioca Cesar Maia os denominou. Hoje, graças à inércia do Poder Judiciário e à conivência governamental, essa verdadeira face do crime organizado se mostra atuante e poderosa. Formadas em sua grande maioria por policiais militares, bombeiros e agentes penitenciários, as milícias disputam o controle de territórios com o poder despótico do tráfico e os lucros advindos de atividades ilegais. Em meio a isso tudo, como ostra entre o rochedo e o mar, fica o povo atônito.
A “guerra contra o narcotráfico” mascara a violência segregacionista contra as populações pobres, presentes em afirmações como a do governador Cabral, para quem a “favela é fábrica de marginais”.
Uma política de segurança que mira invariavelmente os de baixo, jogando sobre eles toda a culpa pelos malfeitos de uma sociedade desigual, tem nome e sobrenome: criminalização da pobreza. Sai governo, entra governo, erros se repetem e multiplicam.
Não há exemplo mais emblemático do que o ocorrido recentemente no Morro dos Macacos, Zona Norte do Rio de Janeiro. Uma facção criminosa invadiu a comunidade durante a noite, para ocupar o lugar dos rivais no “movimento”. Bandidos de ambos os lados foram mortos e os moradores ficaram aterrorizados. Pela manhã, a polícia cerca a comunidade e mata diversas pessoas, supostamente traficantes. Um helicóptero da Corporação, inadequado para esse tipo de operação, foi atingido por um tiro de armamento antiaéreo, pegou fogo, caiu e três policiais foram carbonizados.
Paradoxal. A própria polícia, antecipadamente, teve ciência de que boa parte dos homens que invadiram o Morro dos Macacos sairia do conjunto de favelas do Alemão, Zona da Leopoldina. Há poucos meses, esse mesmo conjunto de favelas foi palco de uma mega operação, onde foram mortas diversas pessoas, supostamente traficantes e também não identificadas. Dezenas de homens da Força de Segurança Nacional ocuparam a comunidade, juntamente com as Polícias Civil e Militar. Como é sabido, o tráfico varejista de entorpecentes continua por lá, a todo vapor, bem como permanece no Morro dos Macacos. Podemos concluir que esse modelo não serve.
Cabe também verificar os propalados avanços do Pronasci (Programa de Segurança Pública com Cidadania), que já aplicou R$ 450 milhões no Rio de Janeiro, e suas iniciativas sociais em áreas pobres. Destaque-se que no Grande Rio cerca de 100 mil jovens, entre 15 e 19 anos, estão fora da rede regular de ensino.
Quais os resultados das ações de combate ao contrabando de armas, da integração com as Forças Armadas nessa tarefa e o efetivo desarmamento dos traficantes, que mostram poderio bélico cada vez maior? É igualmente urgente aferir a dimensão e os efeitos do combate às milícias, também fortemente armadas. E avaliar os resultados e os projetos de ampliação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que até o momento, com pouquíssimas experiências modelo, são objeto de interesse turístico, espécies de “favelas cenográficas”.
A saúde cidadã de uma sociedade tem nos índices de criminalidade e na prática de desvios policiais um de seus termômetros. O Brasil está febril e o estado do paciente é grave.

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